14 de ago. de 2007

Contos da Areia


Nas praias mais tranqüilas, quando o dia começa a morrer e a noite é parida, a silenciosa areia ainda aquecida tem coisas a nós contar.


Então, um vento sopra a lhe garatujar.


Surgem, num assombro, os arabescos e os segredos.

UM

Num claustro sob o solo, sob os restos da fidalga e grande casa, depois de toda uma dinastia extinguida, morou um senhor o qual tentou levar o fim de seus dias da melhor maneira possível:

Lembrando-se.

Lembrou o melhor e o pior de sua vida até a morte lhe ser servida.
Hoje, entre as orquídeas que pereceram descuidadas, as estantes de livros lidos mais de uma vez, as estátuas baratas de deuses de várias raças, uma ampulheta que nunca mais foi virada e um despertador adormecido, ainda há alguma coisa por lá.

Atente:

Se você for até aquela cela, até um espelho coberto por um lençol e, então, desnudá-lo...

Se você olhar para o espelho com o jeito certo de olhar, encontrará o velho com seus olhos leitosos a lhe encarar...
Ainda a se lembrar

DOIS

O gato mia.

A coruja pia.

A lua alta é vista.

É a hora, meninas!

A hora da feitiçaria!

Na cabana erguida sobre a encruzilhada entre as duas estradas romanas esquecidas, construída com as pedras arrancadas dessas vias, acredita-se equivocadamente que moram lá três mulheres.

Se um intrépido intrometido se arrastar espreito pela relva até a janela, verá:

A gorda matrona de braços grossos e sorriso amigo com sua filha, a bonita jovem de regras recém vindas, meio inocente, meio perdida, e a anciã, a velha, retorcida pelos dias, a árvore cuja seiva se finda.

Verá as três jogando coisas na água fervida e filtrando estranhas bebidas.

Um engano justificado, pois poucos sabem do bruxedo que há muito foi feito.
O trio a perambular pelas prateleiras de vidros cheios de ervas, insetos, sapos, morcegos, cobras, fetos, ossos e cadavéricos dedos é apenas um único ser.

Uma mulher que não queria morrer e traficou com o proibido. Os sombrios e antigos atenderam ao seu pedido com um exótico capricho. Ela foi arremessada fora do tempo. Hoje, suas três grandes idades convivem no mesmo momento, dividindo entre si o conhecimento de cada período vivido, vivendo e a viver.

Cada glória.

Cada tormento.

TRÊS

Há um grande tolo!

Há um grande trapaceiro!

Há um tapeador a vagabundear por ai. Sem destino. Sem desígnio, a não ser seu próprio apetite e a paixão pelo desafio.
Pelo o que peleja?

Pelo lucro?

Pelo gosto do logro!

Pelo deleite de dobrar os homens de bem, tomar suas posses, seus sítios, suas mulheres, apenas para lhes arrancar e depois abandonar como se o suado ganho de uma vida honesta fosse simples tralha.

Quantos gritaram segurando o próprio rosto, desesperados de ódio e desgosto, quando se descobriram enganados por aquele andarilho de sorriso charmoso e olhar malicioso?

O bastante para saciar a fome de todos os cemitérios!

Quando a falácia e a lábia lhe entediaram, o pulha aprendeu as Artes e as Ciências.

Agora, verga também a natureza e a supernatureza ao peso de sua safada sutileza.

Resgatou os manuais enterrados e afundados dos magos, devassou o arcano do corpo humano ao abrir os mortos saqueados, tratou com djins, ifrits, demônios e mais o que havia sido aprisionado e selado por Salomão, o abençoado, e olhou para céus estrelados, cujos terrores sublimes foram relatados por ele num grande livro pesado.
Com o fruto de tais estudos conjugados ao seu talento para o pecado, conseguiu o impensável:
Enganou Deus e o Diabo num golpe memorável.

Conseguiu de ambos um contrato assinado, o qual incluía, além de favores dos dois lados para seu gozo inesgotável, a promessa eterna que a humanidade estaria livre das duas potências e suas alianças.

Esse documento, A Alforria do Homem, como foi chamado, é a herança do embusteiro mor e seu paradeiro é um mistério, pois os anjos e os diabos se conciliaram em diligências para encontra-lo e queima-lo.

A cada ano, a um pilantra, a um vigarista, a um espertalhão, o manuscrito é confiado; e por ele protegido, com seus truques e rocamboles, nos livrando tanto do julgo do Inferno maldito quanto do Céu bendito.

3 comentários:

Paulo Castro disse...

É como se assoprando a areia que cobre tudo, o tudo se revelasse em seu caráter real, ou seja, mítico, o colecionador de impropérios, as três anciãs do corda viva, o mago louco de uma bruxaria esperta. Se há a biblioteca de Borges, há também a língua trevosa de Crowley e as duas potências aqui se casam, em tensão especular entre os contos, em graça na escrita e sedução pelas imagens extremamente adequadas.
Abração, Agente Jean.
Paulo.
°

Edu Maretti disse...

Caro Jean, cheguei aqui devido ao teu comentário no "Futebol, política e cachaça", do qual sou membro. Muito interessante o texto "Contos da areia". É teu? Você por acaso é leitor de Edgar Allan Poe?

A propósito de divulgar idéias literárias, segue o link do blog literário de um amigo meu: www.megracko.blogspot.com

abs

ericavaz22 disse...

Jean,

Mais lírico do que nunca. Adorei, so senti falta do seu sarcasmo...rsrsrs